Fruta, fé e fracasso
A simbologia do fruto é muito forte em todas as culturas: o fruto proibido do Éden, a maçã que caiu em Isaac Newton, a maçã mordida do Vale do Silício... Até escrevi uma música sobre isso, qualquer dia eu mostro por aqui. Mas o tema hoje é outro nada fácil de lidar: religião e seus frutos, literais, simbólicos e principalmente ilegais. Foram acontecimentos muito diferentes mas que, se prestarmos atenção e forçarmos a barra, vão apontar para uma só direção.
A primeira fruta da qual vamos falar é a laranja. Segundo o Ministério Público de Goiás (MP-GO), várias delas foram usadas pelo Padre Robson de Oliveira para desviar dinheiro doado pelos fiéis. Os valores eram arrecadados pela Associação Filhos do Pai Eterno (Afipe). A principal campanha pedia doações para a construção da Basílica do Divino Pai Eterno, na cidade de Trindade (GO). A construção começou em 2012, ainda está praticamente no início e, segundo o próprio padre em entrevista ao Fantástico no dia 23 de Agosto, já está orçada num valor 14 vezes maior do que o previsto inicialmente (de R$ 100 milhões para R$ 1,4 bilhões). Ele alega inocência, e a igreja o afastou de suas funções enquanto a justiça analisa a denúncia do MP-GO.
A segunda fruta é a maçã - no caso, aquela envenenada pela rainha má. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) denunciou à justiça a deputada, pastora e cantora gospel Flordelis como a mandante do assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, morto em Junho de 2019. Cinco filhos e uma neta foram presos - ela não, por ter foro privilegiado. A maçã envenenada entra no fato de, segundo a Polícia Civil, ela já ter tentado matar o marido antes por várias vezes, envenenado-o com arsênico.
A terceira fruta fica por conta da mitologia grega - o pomo da discórdia. Certamente todos lembram das pernas de Brad Pitt no filme Tróia, mas nem todo mundo sabe que a história começa com as deusas do Olimpo brigando pelo pomo, sem saber que havia sido plantado por Éris, deusa da discórdia. Na vida real, o fato foi uma criança arrancada da mãe por causa de um ritual de Candomblé. A polícia foi chamada e a avó pediu a guarda da neta. A mãe da criança classifica a situação como intolerância religiosa. As advogadas da avó afirmam que tudo aconteceu com base em denúncias anônimas e relatórios do Conselho Tutelar. Independente da questão familiar, que eu nem poderia analisar, fica no ar a suspeita de que o Conselho Tutelar, um órgão público, induziu a Justiça e a avó da menina a erro, com relatórios baseados em ignorância e preconceito religioso.
O fruto moderno
Falar de religião nunca é algo fácil porque esbarra no emocional das pessoas. Deixando o debate às claras, eu mesmo tive formação evangélica, e ainda me considero uma pessoa de fé. Mas os fatos exigem abordagem direta: precisamos todos repensar o lugar da religião na sociedade. As “frutas” aqui traduzem os crimes da fé contra o patrimônio coletivo, contra a liberdade de crença e contra a própria vida - qualquer semelhança com o mundo pré-moderno não é mera coincidência. Afinal, olhando de forma científica, podemos ver que há um pouco de religião em cada tijolo que construiu a modernidade no ocidente.
Sabe o calendário solar com 12 meses? Paganismo romano. A semana com sete dias? Judaísmo/cristianismo. Os sistemas universais de saúde e assistência social? Catolicismo. Sistema universal de educação? Luteranismo. Estado laico? Anabatismo. Na verdade, eu me permito dar mais atenção nesse último ponto, porque é algo pelo qual a gente costuma passar batido nas aulas de história no ensino médio: existiram dois tipos principais de reforma protestante, e isso influenciou muitas diferenças na organização dos estados modernos.
Eu mesmo só estudei a fundo a história do cristianismo no mestrado, quando estava pesquisando o mercado de música gospel. Grosso modo, existiu a reforma magistral (Lutero, Calvino) e a reforma radical (Menno Simons, John Wesley). Os primeiros ficaram praticamente restritos à Europa, enquanto os segundos fugiram e colonizaram a América Anglo-saxônica. Eu escrevi mais e melhor sobre esses temas no segundo capítulo da minha dissertação de mestrado - você pode ver aqui.
Os radicais receberam esse nome justamente porque eram apolíticos, contra monarquias, impostos e serviço militar obrigatório. Algumas comunidades anabatistas são vistas como verdadeiros protótipos de uma organização social comunista. O cristianismo classificado hoje como evangélico surgiu nas Américas, derivado da reforma radical. Comparando com os evangélicos da política brasileira atual, é no mínimo irônico e é no máximo desesperador tentar saber onde a proposta original dessa fé se perdeu.
Pelos frutos os conhecereis
A minha linha de pesquisa nas ciências sociais é a que se chama materialismo histórico. Nela defende-se que a história das ideias, dos símbolos, das culturas e das tradições não surge do nada. Ela têm muita relação com a economia, com a política, com as leis. Ou seja, muitas vezes produzimos apenas as ideias que a lei não proíbe e que o nosso bolso permite. Quando Jesus diz que os falsos profetas são reconhecidos por seus frutos (Mateus 7:16), eu interpreto que ele está propondo uma leitura materialista da história - mais importante do que a pureza do discurso é o benefício social concreto.
Na semana passada eu escrevi sobre a menina de 10 anos estuprada, que teve os dados vazados e foi perseguida por fanáticos religiosos que não queriam que ela praticasse o seu direito de interromper a gestação (leia aqui). Independente de qual seja a lei e/ou a opinião sobre ela, no fim das contas nós estamos falando de pessoas. Pessoas fazem o que sentem ser preciso, seja defender uma crença morrendo na fogueira, seja ir morar em outro continente, seja interromper o fruto de uma violência. Silenciar palavras intolerantes não muda a cabeça de quem as pensa, mas impede que elas deixem sementes.
Espero que você entenda que eu não estou realmente falando sobre religião. Estou falando sobre como ela é usada de pretexto para disputas políticas, econômicas, e para cometer crimes. Uma prática que deveria estar na vida privada das pessoas, e dando apenas frutos de amor e bondade, continua ligada à vida pública. Os próprios textos sagrados e mitológicos apontam os perigos desses frutos impuros. E quando estado e religião se misturam, nossa cidadania fica manchada tanto quanto a nossa fé.
Cristão evangélico? Como a Igreja que Cristo fundou foi a Católica.Cristão são os católicos.
ResponderExcluirOlá amiga(o), obrigado por ler e comentar. Nós sabemos que dentro de uma mesma fé existem várias interpretações, várias teologias. Mesmo a Igreja Católica tem suas diferenças internas (renovação carismática, teologia da libertação...). Então precisamos sempre respeitar a forma como outras pessoas creem, e inclusive como não creem.
ExcluirWow! Faz tempo que não leio algo tão bem escrito e coerente!
ResponderExcluirQue audiência qualificada! rsrs Obrigado
ExcluirUalll, que texto bem colocado.👏🏾👏🏾👏🏾
ExcluirParabéns pelo argumento, referências históricas, colocações muito apropriadas, Português quase perfeito (e isso, por si só, é coisa raríssima hoje em dia, mesmo entre jornalistas), inferências e predições e o texto todo no geral, super bem escrito!!! Nota 10, com louvor!!! 🤩👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirMuito obrigado por ler e comentar. Fico feliz! Infelizmente o tema é muito duro, mas o bom debate público continua sendo nosso bem mais precioso, não é?
ExcluirMuito esclarecedor o artigo. Quando existe religião tudo vira sensacionalismo... Aprendi ao longo da vida a desconfiar de todos aqueles que usam demais o nome Deus. São sempre esses que me decepcionam... quem é do bem e faz caridade de verdade não publica, faz naturalmente...
ResponderExcluirTambém já tive muitas decepções. Mas, olhando bem, em todas as instituições existem pessoas que desviam suas funções e cometem abusos: na religião, na política, nas universidades... Por isso muitos defendem a religião desinstitucionalizada, praticada de forma individual ou em pequenos grupos informais. É uma possibilidade. Por mais que seja difícil, eu ainda acredito que o estado democrático de direito vale a pena.
Excluir